Não será com os moldes do figurino marxista que conseguiremos dar ao espiritismo a eficiência necessária na transformação do mundo. Herculano Pires

Vamos relembrar conceitos básicos espíritas: Somos Espírito e também matéria, criaturas divinas reencarnadas na Terra. O Espírito é o ser inteligente; a matéria é o elemento inerte que, sob a ação do elemento espiritual, adquire forma e função, originando todos os corpos e substâncias presentes na Natureza.

Partindo desta premissa compreendemos nossa ação e nossa condição humana neste planeta, na perspectiva espírita.

Vivemos no regime sábio da lei das consequências naturais, também conhecida como lei de “causa e efeito”. Quer dizer – e, imersos no plano físico, isso fica ainda mais evidente – que nossas ações geram reações, assim como nossas palavras, escolhas e pensamentos, cada um de nós sendo por elas responsável perante o Cosmos.

Hoje, porém, prospera uma nova tendência em nosso meio, que parece esquecer ou que minimiza o valor desse entendimento, a que vou me referir como “negacionismo pseudoespírita”.

Negacionismo: recusar fatos e conceitos já estabelecidos como reais e verdadeiros.

Pseudoespírita: de pessoas que se dizem espíritas mas não não percebem a incompatibilidade do Espiritismo com teorias materialistas.

O Espiritismo tem propostas concretas e positivas de progresso da sociedade como fruto da melhoria moral dos Espíritos reencarnados. O estudo e o entendimento racional das Leis Universais apontam a transformação interior como grande e insuperável necessidade do planeta, solução para os males que hoje nos afligem. Contudo, embora seja esta a perspectiva simples e racional de Kardec e dos Espíritos Superiores da Codificação, ela é renegada por essa parcela de espíritas autodenominados progressistas ou à esquerda que expressam, em artigos e redes sociais, suas posições derivadas de novas premissas, incompatíveis com os fundamentos doutrinários.

Quem representa esse negacionismo pseudoespírita, atualmente?

Ignorância ou desprezo por esses mesmos fundamentos, adesão intelectual a concepções materialistas da existência e abuso da Retórica em detrimento da Lógica, eis algumas de suas características.

Na base do negacionismo pseudoespírita há os negadores da racionalidade, que abandonaram o edifício lógico dos princípios espíritas e se apropriaram de termos e ideias marxistas (materialistas), ainda que incompatíveis com os princípios mais fundamentais do Espiritismo. Sua linguagem denota adesão a pensadores contemporâneos como Karl Marx e representantes da Escola de Frankfurt, de Horkheimer e outros – incompatíveis com a cosmovisão espírita. Não parecem, contudo, preocupar-se com isso.

A chamada Escola de Frankfurt reuniu intelectuais de inclinação marxista que se propunham a estudar a civilização ocidental, motivados pela ideia de desmontá-la culturalmente. Diferente do Espiritismo, em seu encadeamento de conceitos que partem de premissas logicamente verdadeiras e inquestionáveis, para esses estudiosos nenhuma verdade essencial ou solidamente embasada existe, que possa ser encontrada pela razão. Para Horkheimer, por exemplo, a matéria é que cria o espírito e Deus não existe.

Na falta de melhor ponto de partida, pensadores à esquerda adotaram essa dicotomia superficial de base materialista, da sociedade dividida entre “opressores” e “oprimidos” em permanente conflito. Karl Marx (de cujas mãos “saiu Lenine, e das mãos deste, a Rússia Soviética”, com seu desprezo pelas liberdades e seus incontáveis assassinatos) falava em “burguesia” e “proletariado” como categorias de personagens no teatro social. No entanto, o entendimento básico na Doutrina Espírita é que a sociedade terrena, no contexto universal, assim como países, cidades e comunidades menores, constituem-se de almas reencarnadas experimentando seu crescente livre-arbítrio, convidadas a exercer o respeito, o amor e a humildade, estimuladas a se desenvolverem intelectualmente. Enquanto isso, num estrabismo simplista e falacioso, os marxistas afirmam que a dinâmica da sociedade se restringe à luta entre dois grupos opostos por razões puramente terrenas, sem perspectiva além do terra-a-terra.

Segundo a Teoria Crítica da Sociedade, herança de Frankfurt, o indivíduo surge no berço para se tornar mero produto da História, sem origem divina, sem passado espiritual, sem evolução moral. Mas segundo a resposta dos Espíritos a Kardec, o ser humano é “artífice de sua própria infelicidade” e, por extensão, o artífice do seu destino. (O Livro dos Espíritos, questão 921). E a vida espiritual tem prevalência sobre as circunstâncias materiais, quando sabemos que:

“O homem bem compenetrado do seu destino futuro não vê na existência corpórea mais do que uma rápida passagem. É como uma parada momentânea numa hospedaria precária. Ele se consola facilmente de alguns aborrecimentos passageiros, numa viagem que deve conduzi-lo a uma situação tanto melhor quanto mais atenciosamente tenha feito os seus preparativos para ela.

Somos punidos nesta vida pelas infrações que cometemos às leis da existência corpórea, pelos próprios males decorrentes dessas infrações e pelos nossos próprios excessos.

Se remontarmos pouco a pouco à origem do que chamamos infelicidades terrenas, veremos a estas, na sua maioria, como a consequência de um primeiro desvio do caminho certo. Em virtude desse desvio inicial entramos num mau caminho, e, de consequência em consequência, caímos afinal na desgraça.”

Não reconhecendo a profundidade e anterioridade dos processos humanos e sociais, os materialistas olham tão somente para o status quo, que desejariam modificar às pressas para alcançar o exercício de igualdade forçada, artificial… e frágil.

Mas encontrar espíritas afirmando isso, eis o absurdo! Diz ainda a questão 811 de O Livro dos Espíritos a respeito:

811. Será possível, e já terá existido, a igualdade absoluta das riquezas?

“Não; nem é possível. A isso se opõe a diversidade das faculdades e dos caracteres.”

a) Há, no entanto, homens que julgam ser esse o remédio aos males da sociedade. Que pensais a respeito?

“São cultores de sistemas, esses tais, ou ambiciosos cheios de inveja. Não compreendem que a igualdade com que sonham seria a curto prazo desfeita pela força das coisas. Combatei o egoísmo, que é a vossa chaga social, e não corrais atrás de quimeras.” [grifo nosso]

Sem nada de construtivo a propor, os meios desses herdeiros de Marx e Frankfurt para atingir suas metas são, tão somente, o discurso, a linguagem e o convencimento. Ou seja, a Retórica.

Aparentemente esquecidos de nossa transcendência, que não tem lugar na proposta marxista, os pseudoespíritas convertem-se em negadores do Cristo em suas bases – o Mestre amoroso que jamais foi um revolucionário ou um subversivo, como pretendem, mas que pregava nossa filiação divina comum e convidava à fraternidade e à prática do Bem, da humildade e do perdão. Em vez disso, elegem o falso profeta Karl Marx (o qual afirmou odiar o Espiritismo) como “ídolo de barro”, o qual estudam e citam como se fosse a chave da compreensão da condição humana, sem atentar para o absurdo, do seu materialismo histórico. Vendados ou cegos para as raízes mais profundas da realidade que vivemos, que são sobretudo espirituais.

Ignoram a distância intransponível entre o “ideal socialista” e o socialismo histórico, este último já fracassado e repleto de mazelas. Discordando da compreensão espírita da realidade, a solução marxista para a sociedade “ideal” é o controle e, seus meios de implantação, a propaganda, a restrição da liberdade e a perseguição política.

Para o Espiritismo tudo isso é inadmissível, pois nele a liberdade é uma Lei e, o livre-arbítrio, a sua digna expressão, sendo, cada ser consciente reencarnado na Terra, sem exceção, o resultado do seu passado espiritual, com a oportunidade de construção de um futuro segundo o seu arbítrio.

Para acomodar ideias marxistas, há que se colocar de lado, portanto, todo o edifício da Filosofia Espírita, já que Marx, Horkheimer, Adorno e outros não reconhecem a alma, a liberdade e, muito menos, a preexistência do ser humano em sua jornada individual de redenção e progresso. Sem tal perspectiva, esses teóricos e os pseudoespíritas veem, por exemplo, no criminoso, uma vítima da “violência estrutural” da sociedade – e não de suas más escolhas, de encarnações prévias e decisões infelizes – o que está em flagrante desacordo com os conceitos espíritas mais fundamentais, segundo os quais somos herdeiros de nós mesmos. Também negligenciam o fato de que a reencarnação ocorre por escolha prévia do reencarnante, auxiliado por Espíritos mais elevados, do meio e das condições que favorecem sua transformação interior e seu progresso.

Desse modo, os pseudoespíritas também nos surpreendem como negadores da liberdade. Afinal, se somos “determinados” pela sociedade, o “livre pensar” e o livre-arbítrio inexistem.

(E seu menosprezo pela liberdade de consciência também se evidencia em alguns episódios, pelo inconformismo e indignação que manifestam, quando ao tentarmos dialogar, não concordamos com eles, não aceitamos as suas ideias. É nítido que alguns até se sentem os ‘verdadeiros’ cristãos, ‘moralmente superiores’ àqueles com pensamento construído sobre alicerce distinto do seu. Contudo, ao esfacelar a Lei de Igualdade em uma suposta filosofia social espírita, pregam uma caridade compulsória e desprovida de sentido, onde o coração não participa e a vontade não decide.)

Ao assumirem as opiniões acima, tornam-se negadores da Codificação. Ignoram os textos de Kardec que desqualificam seus raciocínios, mas se socorrem daqueles que, descontextualizados, parecem apoiá-los.

Quase concluindo, relembro meu respeito inequívoco ao direito de livre pensar, bem como aos que discordam desse post. Também creio que todos queremos uma sociedade melhor, um mundo que reflita os ensinos do Cristo e de outros mestres que vieram à Terra trazer princípios de amor e convivência para o aprimoramento da sociedade. Mas discordamos dos meios de atingi-lo.

Os progressistas creem que a via política é o caminho, esquecendo-se de que a política é reflexo da condição moral, o que não só está explicitado em Kardec, como é visível numa observação transcendente da História e das biografias dos governantes, estadistas e políticos (para quem Kardec jamais fez campanha ou elaborou defesas).

A propósito, sugiro aqui a leitura de Os Senhores do Mundo, de Herminio C. Miranda (Ed. Lachatre), uma análise da complexidade dos processos espirituais envolvidos no poder, na luta pelo poder e no seu exercício.

Enquanto isso, grande número de espíritas segue empenhado tão somente no aprimoramento de si mesmos, no exercício fraternal, no bom combate ao orgulho e ao egoísmo, como via real de progresso do indivíduo com impacto no lar, no bairro, nas cidades e no planeta.

Imagem: David Underland (Pixabay)

Publicado por ritafoelker

Filósofa, palestrante e jornalista. Escritora reconhecida nos temas: espiritualidade, inteligência emocional e educação, publica livros desde 1992. Faz palestras no Brasil e no exterior. Formação em Pedagogia Sistêmica com a Educação, pelo Instituto Hellen Vieira da Fonseca.

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5 comentários

  1. Minha querida amiga, que texto maravilhoso. Como é que você não tinha trazido o mesmo ao meu conhecimento (pretensioso, não é verdade?). E ele está lá naquele mesmo lugarzinho que por falta de tempo ou vergonha na cara, eu não visito há muito tempo.

    Bem, sem mais delongas eu agradeço de coração por tê-lo trazido ao meu conhecimento, dizendo que além de apreciá-lo enormemente, ele como que lavou a minha Alma, porque esse negócio tem me incomodado muito, especialmente naqueles momentos que de vez em quando se passa nas nossas reuniões de trabalho na Fundação.

    Bem, como o texto é público, eu acho que não preciso pedir licença para repassá-lo para alguém. Correto? Mas não vai ser agora, vou relê-lo novamente no seu Blog e checar com mais detalhes aquela informação sobre o Karl Marx se manifestando a respeito do Espiritismo, que eu não tinha conhecimento.

    Enquanto isso eu ousaria a convidá-la para numa hora dessas, sem pressa e a sua conveniência, batermos um daqueles nossos papos. Estou com saudades.

    Fique com Deus, obrigado mesmo e abraços no Irineu. Antonio Leite

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  2. Um artigo fabuloso. Oportuno ainda acrescentar que tal infiltração se deu através dos métodos de Antonio Gramsci, descritos em grande parte, nos 32 Cadernos do Cárcere. São criaturas gramiscistas e nem sabem que são, pois para isso foi desenvolvido o método de Gramsci, infiltração com agentes não declarados e acidentais, pois chamam menos atenção do que um gramscista declarado.
    Parabéns.

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  3. Sensacional. Você traduziu os nossos incômodos com a falta de amor e respeito a Jesus e a Doutrina com uma elegância e suavidade incríveis. Posso dizer? Me senti representada em seu maravilhoso artigo. Paz e luz. Que Deus te abençoe sempre.

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  4. Boa tarde! Gostei! Muito bom. Acredito que se houvesse estudo das obras básica e discernimento não diriam ou defenderia tamanha asneiras.

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