A palavra familismo surgiu num tweet da Marcia Tiburi no final de 2022, junto com ‘capitalismo’, ‘hipocrisia’ e crítica ao sentido espiritual do Natal, já que a missão de Jesus “deu errado”, segundo a escritora.

Mas o que é familismo? Um governo das famílias? Uma doutrina ou ideologia centrada na família? Talvez, uma doença de quem não consegue se desapegar da família, como um alcoolismo…? Ou seria um vício ou mania, como consumismo?… Já vi o termo ser traduzido por nepotismo, que é o favorecimento indevido de pessoas da família, mas não é o caso.  

“Familismo” surge em artigos e trabalhos acadêmicos das Ciências Sociais, como a busca do bem-estar e a proteção da família, onde o Estado atua quando os próprios membros não conseguem fazê-lo. Por exemplo, no caso de uma mãe “solo” que recebe do Estado apoio, assistência e ajuda de que precisa, para cuidar do filho na ausência do parceiro.

Porém, nesses textos e artigos o familismo é frequentemente encarado como uma “proteção social capitalista” contra os males que o próprio capitalismo geraria (pobreza, miséria, desemprego). Um modo de autopreservação do sistema, como um todo.

Aqui começamos a entender a associação feita entre “capitalismo” e “familismo” expressa por Marcia, como também de ambos com a “hipocrisia” implícita em ajudar famílias dentro de um sistema que teoricamente as prejudica. Afinal há quem diga que o socialismo (caso funcionasse!) simplesmente erradicaria tais problemas.

No entanto, essa tese não é pacífica. O jornalista e escritor James Bartholomew entende que o “welfare state” – essa proteção estatal que visa o bem-estar social – embora visando a proteção das famílias também acaba incentivando sua destruição enquanto instituição, por proporcionar, aos seus membros, formas de seguirem sozinhos com suas vidas.

Mas vamos à relação do tema com o Espiritismo.

Lembre-se de que o socialismo nasce de uma concepção materialista-histórica da existência, agindo como se fôssemos seres passageiros e finitos, produzidos exclusivamente pela união de duas células que se encontram sem nenhum propósito inteligente. O resultado é um indivíduo sem passado, sem intuito superior e que receberá uma educação em que será condicionado para se tornar, posteriormente, um adulto bem encaixado no sistema. Nessa perspectiva, que não aceita a natureza transcendente dos seres, a missão de Jesus deu errado quando ele foi torturado e morto, porque quem ele era deixou de existir naquele momento, lançando por terra toda sua mensagem sobre Deus e transcendência!

Mas nós, espíritas, sabemos que não funciona dessa forma.

O ser humano não surge de uma fecundação entre duas células, seja programada ou fortuita. Geneticamente, estamos aqui graças ao corpo físico gerado por um pai e uma mãe. Espiritualmente, procedemos de um amplo passado espiritual cuja memória está temporariamente bloqueada, mas como portadores das nossas conquistas evolutivas, no campo da inteligência e da moralidade, somos aptos a dirigir nossos destinos conforme nossa vontade e discernimento. Ora, somos Espíritos, que renascem na Terra por vontade e necessidade de evoluir.

Se nossos pais não se gostam mais, se vivem longe, se já estão do Outro Lado, o que importa é que unicamente por intermédio deles recebemos a oportunidade de reencarnar e que as circunstâncias têm a ver com nossa proposta para o progresso naquela existência.

Daí decorre que família não é um construto meramente social mas, sim, um projeto para reencontros, reparações e progresso, com um objetivo espiritual. Portanto, família não é algo desprezível ou indesejável, como se fosse um vício ou uma ideologia, nem uma associação sem maior significado. Família é constituída por vínculos espirituais – embora o convívio às vezes se mostre difícil e complicado – a serem socialmente respeitados e protegidos.

Não somos produto do acaso genético, as nossas circunstâncias e vínculos presentes, repercutem relações do passado espiritual. Simpatias e antipatias. Bloqueios e superações… Porém sempre no intuito de aprimorar moral e intelectualmente os seres imersos nessa relação que retrata compromissos do pretérito e anseios de aprimoramento.

Nossas escolhas na Terra também não são determinadas pelo meio externo. Se fôssemos condicionados a agir de certo modo, seríamos inimputáveis, ou seja, nossos atos não poderiam ser-nos imputados. Consequentemente seríamos irresponsáveis, não teríamos responsabilidade por nossas escolhas. E dessa forma, as boas escolhas não seriam melhores que as ruins, porque não seriam nossas, sendo avaliadas tão somente numa perspectiva pragmática! Somente as doutrinas materialistas encaram o ser humano dessa forma. Por isso veem a doutrinação como único meio de obter comportamentos socialmente aceitáveis/desejados. Quando um indivíduo insiste em contrariar as diretrizes da sua doutrinação, surge a necessidade de correção, ou reeducação, um processo de readequação doutrinária. Na China, por exemplo, centenas de milhares de muçulmanos uigures são detidos em campos de reeducação, para serem desprogramados de sua educação no Islã.

Sem dúvida existe influência do ambiente sobre nossos pensamentos, crenças e comportamentos, mas nada interfere no livre-arbítrio, no nível de progresso moral que atingimos. Mesmo sem recordação clara do passado, rejeitamos pensamentos e atitudes inferiores já superadas.

“Sem o livre-arbítrio, o homem não teria nem culpa na prática do mal, nem mérito na prática do bem. E isto a tal ponto está reconhecido que, no mundo, a censura ou o elogio são feitos à intenção, isto é, à vontade. Ora, quem diz vontade diz liberdade” (Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos, questão 872).

Então vamos relembrar sempre as noções básicas do Espiritismo, quando lermos ou assistirmos a conteúdos nas redes sociais. Procuremos compreender as palavras e seus significados, antes de incorporá-las em nossas falas, sobretudo aquelas que excluem ao mesmo tempo a mais profunda vontade da alma: crescer em consciência. O materialismo (histórico, dialético, científico…) aniquila a liberdade e o livre-arbítrio, enquanto que o Espiritismo, deles nos oferta a real dimensão.


Foto: Hana El Zohiry (Unsplash)

Publicado por ritafoelker

Filósofa, palestrante e jornalista. Escritora reconhecida nos temas: espiritualidade, inteligência emocional e educação, publica livros desde 1992. Faz palestras no Brasil e no exterior. Formação em Pedagogia Sistêmica com a Educação, pelo Instituto Hellen Vieira da Fonseca.

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1 comentário

  1. Texto maravilhoso Rita. Como de costume você nos brinda com textos excelentes que nos causa prazer em lê-los. Não somente pelo estilo agradável que facilita a leitura, mas também e principalmente, pelo profundo conteúdo filosófica, uma visão de espiritualidade profunda e compatível com o nível de esclarecimento já conquistado por grande parte da humanidade neste século de luzes resplendentes.
    Entendemos ser realmente muito difícil para aqueles que sem o entendimento e a aceitação do sentido de espiritualidade que transcende os estreitos limites de uma vida terrena, pretendem encarcerar o ser humano nos reduzidos limites das conceituações supostamente filosóficas das suas ideologias.
    Não me limito aqui, inclusive, a circunscrever esse entendimento mais amplo e menos redutível do ser humano, apenas aos cultores do Espiritismo. Entendo mesmo que ele já penetrou, apesar da resistência ainda sitemática, nos meios acadêmicos mais apurados do Planeta. Quem tiver olhos para enxergar, perceberá que este é um fenômeno dos nossos tempos, e quer adimita ou não a incúria humana, ele só vai ampliar-se.
    Percebemos esse tipo de pretensão descabida, no meu entendimento, até mesmo nos meios espiritualistas, e porque não dizer espírita. É o gosto excessivo pelo desejo vão e incompatível de querer arrastar o espiritismo para a seara de ideologias político-partidárias.

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