Tenho visto crianças de 6, 7, 8 anos com um discurso de “não é justo”. Se um amiguinho tem um brinquedo a mais: “não é justo ele ter e eu não”. Se o amiguinho tem uma roupa do super-herói e ele não tem: “não é justo… p q ele tem e eu não?

Nas próximas linhas, estou desenvolvendo uma reflexão sobre essa postagem de uma amiga, também avó e educadora, num grupo de Whatsapp.

Você se lembra de Quase Irmãos (Step Brothers, 2008), filme em que dois caras imaturos vivem de realizar desejos e maluquices sem qualquer respeito à família, conhecimento técnico e discernimento moral? Tempos atrás isso era comédia. No entanto, praticamente toda uma geração está crescendo agora mesmo, sob a influência dessa ideia que permeia postagens, propaganda, discursos ideo1ógicos e filmes.

Hoje está difícil assistir a uma simples série no streaming, sem ser abalroado por ideo1ogias desse teor. Eu nasci pronto e, se eu não tenho o que quero, alguém me deve e vou exigir. É um tipo de “direito inato” de se comportar desafiadoramente e com pequena noção da realidade da vida.

Afinal, onde foi parar a preparação e o esforço pessoal em favor do que almejamos? Está sumindo até dos enredos clássicos. Só um exemplo: Anéis de Poder, disponível no Prime Video, deturpou e negou o próprio fundamento da obra original de J. R. Tolkien em favor dessa crença. A Galadriel de Anéis de Poder não precisa de mestres ou aprendizado. Ela já nasceu pronta e arrogante, sabe tudo e não tem de ouvir ninguém. O roteiro pisoteou a jornada de crescimento interior – também chamada de “jornada do herói” que permeia a narrativa original[1] da obra, escrita entre 1937 e 1949, onde tanto Frodo, quanto o próprio Gandalf evoluem dentro de suas trajetórias. O mesmo ocorre com outros personagens, que vivenciam aquele período longo e cheio de percalços em que cada ser se conhece, descobre suas fraquezas, testa a si mesmo nas batalhas para, enfim, conquistar experiência, sabedoria, paz e humildade.

Então, enquanto as crianças reclamam de não ter uma roupa de Batman ou Mulher Maravilha, observamos que a questão é muito mais profunda. É a estranha noção implícita nessa reivindicação, de que devo ter algo, merecendo ou não, me esforçando ou não e que, se não tiver, alguém é culpado e me sinto injustiçado.

São pessoas que exigem coisas, direitos e condições, mas ainda não verificaram se possuem os requisitos mínimos para alcançá-los. Imaginam que se pode aprender sem estudar. Ganhar dinheiro sem trabalhar. Montar quebra-cabeça sem organizar as peças. Pescar com anzol sem isca. Construir sem se esforçar…

A profa. Lúcia Helena Galvão ofereceu um ótimo exemplo, quando participou do podcast Inteligência Ltda: esperar que saia um coelho de dentro de uma cartola, onde você não colocou o coelho!

A minha geração se vê na seguinte situação: nós nos preparamos arduamente para exercer uma função na sociedade, sabendo que, para isso, teríamos de abdicar de muitas coisas; estudamos nas madrugadas, economizamos dinheiro, fizemos trabalho extra, auxiliamos nossas famílias e isso construiu em nós uma visão de necessidade, prioridade, justiça e satisfação.

Se hoje tirei habilitação e trabalho, eu posso financiar um carro. Posso usá-lo para levar minha avó ao médico. Posso usá-lo para viajar nas férias. Mas a ideia muito simplista que encontramos na rede social e na sociedade é: “Eu quero, porque eu quero! E alguém tem de me dar um carro”.

Junto com essa visão míope, muito simplista e ingênua, vemos uma outra frase de cursinho de autoestima, que diz que “eu mereço”. Mas… o que é merecer? O que em nós gera real merecimento? Ora, o esforço, a ética, o uso inteligente das nossas possibilidades, a humildade para aprender o que não sabemos. Na filosofia espírita descobrimos que a própria Lei Divina ou Natural funciona com fundamento na necessidade e no merecimento de cada criatura.

Enquanto isso, o meio em que vivemos contribui para distanciar nossas crianças e jovens dessa realidade. Afinal, se eu apareço na rede social com, digamos, um carro novo, isto está posto! Ali não diz quanto me custou, ou quem possibilitou; se fiquei com um carnê do tamanho de uma “bíblia” pra pagar e nem o tempo que esperei para poder adquiri-lo. Mas alguém vai olhar, ficar bravo e apenas dizer “por que Fulana tem e eu não tenho?…” Se uma amiga do Face está em Nova York, geralmente não sabemos quanto tempo ela economizou e está planejando isso, mas alguém vai dizer: “Por que ela pode e eu não? Isso não é justo!” E dependendo do grau de inveja, talvez passe a praguejar contra a vida, a família, a situação financeira, o chefe, o governo, Deus…

Citei duas realizações socialmente valorizadas: carro e viagem. Mas a pergunta que fundamenta essas conquistas raramente é feita. Como é que EU produzo VALOR na minha vida?

Será que aquela pessoa que consome muito, ou consome com muito estilo, vive realmente bem, tem alegrias, tem amigos verdadeiros, tem paz quando deita a cabeça no travesseiro para dormir? Será que ela também não vive dramas e desafios que nós desconhecemos?

Plantar para poder colher é um tipo de lei da vida. Nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, encontramos a história de certo homem que saiu a semear, cuja experiência com diferentes solos e condições do ambiente ensinou-lhe como haveria de agir para colher bons frutos. Quer dizer: Planta com sabedoria e colherás fartamente. No entanto, é na infância e na adolescência que se é preparado nesse conhecimento tão importante.

No outro extremo do desejo e consumismo exacerbados, acenam a alma e a biografia de Francisco de Assis, o poverello, que nada possuía. Sua vida cotidiana, no entanto, era uma ode ao amor e à alegria. E o que ele construiu – sua visão da vida, sua prática, seu exemplo – persistem até os dias atuais. Em contrapartida, quantos sorrisos que você vê na rede social são de verdade? Quantos são só pose?

Note bem: se eu somente vivo criticando tudo que vejo sem propor alternativa ou agir em sentido diverso; se critico a religião propagando ateísmo e materialismo; se desprezo a escola em favor de educação nenhuma e aumento da ignorância, como posso imaginar uma sociedade e um mundo melhor?

Gritando e reclamando, sem nada plantar ou construir, se isso se tornar conduta padrão, onde iremos chegar?…

Precisamos consumir tanto, afinal?

Possuo talheres e formas de bolo que foram da minha mãe. São de boa qualidade e estão durando muito. Isso quer dizer que coletivamente eu não abracei o consumismo nem os modismos e que ninguém precisou explorar e escavar minas de alumínio, nem produzir aço inox, para que eu coma um pedaço de bolo… Isso pra mim também é valor: é o desperdício e a degradação ambiental que eu evito.

Então, fica o questionamento: Como é que você está produzindo valor, agora? Está levando a sério a sua formação escolar e intelectual? Está auxiliando o bem-estar do próximo de alguma forma? Está gerando cura ao seu redor, nas pessoas e no ambiente? Você está prestes a fazer uma descoberta científica que aliviará algum dos grandes sofrimentos da humanidade (fome, doenças, pobreza, degradação da Natureza etc.)?

Encerro com duas citações. Uma de Schopenhauer: “A nossa felicidade depende mais do que temos nas nossas cabeças, do que nos nossos bolsos”. Outra de Marianne Williamson: “A paz interior não vem de conseguir o que queremos, mas de nos lembrarmos de quem somos.”


[1] “A aventura do herói marca o momento em que este, embora ainda esteja vivo, descobriu e abriu o caminho da luz, para além dos sombrios limites da nossa morte em vida. Assim é que os símbolos cósmicos são apresentados num espírito de sublime paradoxo, que põe o pensamento em polvorosa. O reino de Deus está dentro de nós e, não obstante, também está fora de nós; Deus, todavia, não é senão um meio conveniente de despertar a princesa adormecida, a alma.” (Joseph Campbell em O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1993)

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Foto: Jason Rosewell na Unsplash. Batman e balão: Batman Costume Vectors by Vecteezy e Chat Box Vectors by Vecteezy

Publicado por ritafoelker

Filósofa, palestrante e jornalista. Escritora reconhecida nos temas: espiritualidade, inteligência emocional e educação, publica livros desde 1992. Faz palestras no Brasil e no exterior. Formação em Pedagogia Sistêmica com a Educação, pelo Instituto Hellen Vieira da Fonseca.

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2 comentários

  1. Olá Rita, posso postar na Rádio Portal da Luz? A propósito, estou reapresentando seu programa que fez conosco, abçs iluminado

    Luiz

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